“Onde você ainda se reconhece…?” (A Lista - Oswaldo Montenegro)

Mais de quatro anos se passaram e eu ainda ensaio um retorno diferente para o Blog. Com as redes sociais cada vez mais privilegiando conteúdos de dancinhas e videos curtos, me vi desmotivada a criar algum tipo de conteúdo pra compartilhar nas plataformas. Não que antes eu me estimulasse muito, dado que a ideia de trabalhar de graça pra bilionário ganhar mais dinheiro sempre me incomodou. Mas agora o novo formato, junto ao fortalecimento da extrema direita no mundo e facilitação de atos terroristas por todos os lados, me faz pensar do por que disso tudo. Penso que a ferramenta do blog é melhor neste sentido. Pelo menos para quem gosta de escrever, como eu. Aqui eu posso devanear num espaço criado e pago por mim. E se você quiser vir me ler, tanto melhor!

Já se completaram dois meses que estou de volta ao Brasil. Neste período eu me dei um tempo antes de voltar a encontrar pessoas do meu convívio. Eu precisava “terminar de chegar”. Engraçado este sentimento de que fisicamente você se moveu, mas psicologicamente ainda está em trânsito. Não sei dizer se isto está vinculado a falta da minha casa física e que, por isso, eu poderia me definir como uma tartaruga fora do casco. Ou se está mais ligado a busca por construir uma nova vida para reconhecer-se no lugar onde chegou. Podem muito bem ser as duas coisas ao mesmo tempo. E daí fico me perguntando como seria se já tivessem inventado o teletransporte. Seria possível a gente ser transportado dentro da nossa casa? A tartaruga com o casco? Nunca compreendi tanto aquelas cenas norte-americanas de carregar uma casa inteira num caminhão: a melhor imagem para aquela expressão “mudar-se de mala e cuia”.

A experiência de morar no exterior costuma ser muito glamourizada na imaginação das pessoas. É claro que há inumeras vantagens de ir morar num outro lugar: estar perto de pontos turísticos famosos e paisagens desejadas e incluidas no check-list de muita gente. Mas pare para pensar um pouco: quanta vezes você fez turismo na cidade onde mora? Você seria capaz de dizer a um forasteiro onde ir para ter uma ideia da sua cidade, que não fossem os lugares que você frequenta na sua rotina? Eu mesma admito que só conheci a famosa praça dos Cristais de Brasília em 2019. Brasília é minha cidade natal, onde cresci e vivi 32 anos da minha vida. Não foram poucas as vezes que conheci estrangeiros que conhecem mais o território brasilieiro que eu. E hoje posso dizer que conheco mais o território estadunidente e o chinês do que o do meu próprio país.

Quando eu chego num novo lugar, minha primeira reação é um misto de encantamento e retração. Curiosidade pelo diferente e medo do desconhecido. Na China, por exemplo, mais especificamente Pequim - cidade em que morei-, eu levei um tempo para lidar com a poluição do ar. Chegamos no verão e fiquei muito assustada com o aspecto leitoso do céu da cidade. Aos poucos, fui percebendo que isso não acontecia todos os dias, que haviam mais dias de céu azul e ensolarado. E me adaptei tanto ao ponto de achar incrível quando houve uma tempestade de areia tão forte que deixou o céu da cidade cor de laranja. Acostumei rapidamente ao uso de máscaras antipoluição para me preservar - já que tenho asma -, e a vida floresceu. Agora estou vivendo um momento parecido. Porém, estou em Brasília. Você pode se perguntar como isto é possível sendo que vivi a maior parte da minha vida aqui. Mas aí tem-se de fazer um raciocínio inverso: o que daquela cidade que conheci ainda existe? Você já visitou uma escola, onde você foi muito feliz quando criança, depois de adulto? Qual foi a sensação? Procurou-se nos pátios e parquinhos, brincando com os colegas? É possível estar em um lugar cheio de memórias e não se deixar consumir por elas? O que é mais complicado: visitar memórias de um tempo perdido ou procurar lugares onde seja possível se reconhecer quando num país novo? Eu não tenho esta resposa. Aprendi somente a me dar o tempo que necessito para “termminar de chegar”. E tenho consciência de que isso é um luxo para muita gente. Um privilégio, mesmo que também sofrido.

No momento em que escrevo vivo uma experiência diferente. Peguei minhas coisas, meu computador e demais instrumentos para trabalho e vim a um bairro mais afastado do plano piloto, onde não tenho memórias. Sentei num café que queria conhecer há um tempo e comecei a escrever. Isto poderia tornar-se um hábito. Talvez eu consiga fazer isso. Mas enquanto o meu casco/ casa não chega, vou continuar me permitindo experimentar, no intuito de criar um novo capítulo nesta cidade de momentos tão especiais. Mergulhar na nostalgia quando preciso, tentando manter a cabeça fora da água pra ver o que acontece lá fora. E, aos poucos, ir tomando conhecimento da minha nova vida em Brasília. Vou conseguir? Te conto depois.

[Diário de bordo] Novo país, nova vida, nova casa: China!

Estamos em Pequim desde meados da segunda quinzena de julho. Estivemos aqui em fevereiro último para dar uma olhada ao redor e descobrir se iríamos gostar de viver aqui e batemos o martelo. De lá pra cá aguardamos as confirmações todas, preparamos a mudança. Nos desfizemos de coisas que não queríamos mais. Passamos inúmeros estresses... Tudo aconteceu muito rápido, só que não. 

O fato é que estamos aqui há 10 meses. Procurar apartamento por aqui revelou-se tão complicado quanto em outros lugares, porque há muitas opções ruins. Até encontrar o lugar, onde a relação planta do apartamento + prédio + localização do imóvel atendessem às nossas expectativas, levou um tempo. E no fim o escolhido foi um apartamento num dos primeiros prédios onde Bruno esteve assim que chegamos. Quando eu vim ver, haviam outras unidades disponíveis e os apartamentos mais altos têm uma vista incrível, com a qual eu queria casar. Até encontrarmos um apartamento que estaria vago na data em que nossa mudança chegaria levou um tempo. Mas tudo se ajeitou. Ufa!?

A vista do skyline de Pequim que temos da janela da sala.

A vista do skyline de Pequim que temos da janela da sala.

Mais ou menos.


Quando viemos em fevereiro, o objetivo fundamental era avaliar as condições de poluição em que a cidade se encontrava. Nossa viagem pela Índia, apesar de incrível, me deu um certo desespero de viver num lugar extremamente poluído. Apesar das notícias de que a qualidade do ar em Pequim vinha melhorando consideravelmente, dados os esforços do governo chinês neste sentido, eu queria ver com meus próprios olhos. E foi tudo tão tranquilo que nem titubeamos. Seria bom pra mim, dada a riqueza da cozinha chinesa, e seria bom para o Bruno porque o escritório da China é um dos maiores e mais importantes para o trabalho dele. Só que, quando chegamos aqui - em pleno verão - o calor era tanto e a poluição estava tão forte que eu experimentei um certo pânico nos primeiros dias. Uma das piores combinações pra mim, capaz de me fazer não querer sair de casa por nada deste mundo. Então meus primeiros 2 meses na cidade foram meio caóticos.

Eu experimentei, também, um certo luto pela mudança de país. Ele sempre existe. Mudar de país é como se você morresse junto com a mudança. Daí no novo lugar você precisa renascer, tentar se conectar com o novo espaço, construir uma nova vida do início. Além disso, a minha capacidade de comunicação diminuiu drasticamente. Enquanto no Sri Lanka eu conseguia me virar bem em inglês ao ponto de não ter precisado aprender a língua local, em Pequim eu praticamente me comunicava por mímica. Claro que com o tempo e a falta de domínio das línguas locais (em Miami eu levei tempo pra soltar a língua e compreender o que as pessoas falavam comigo em inglês. Quando eu finalmente comecei a me comunicar, as pessoas teimavam em me responder em espanhol), eu desenvolvi uma capacidade de compreensão da linguagem corporal e olhares que me fazem perceber mais rapidamente o que estão tentando me dizer em outro idioma. Pois bem, o luto foi mais forte do que eu imaginava, por estes motivos todos, mais os acontecimentos do Brasil que me deixaram à beira de um ataque de nervos e uma vontade incrível de sumir do mundo. Deprimi. O outono chegou e com ele o pólen suspenso no ar me levou a nocaute. Fui parar no hospital. Levei mais de um mês pra conseguir me recuperar. Mal conseguia ficar de pé. Passou.

Aos poucos eu fui descobrindo lugares interessantes, me conectando com novas pessoas e descobrindo escolas de cozinha e restaurantes que oferecem o que há de melhor da variada cozinha chinesa que eu não conhecia. Comecei a estudar o Mandarim. Fui aprendendo a me localizar na cidade. Encontrei fornecedores de pão sourdough. Perto do meu prédio tem uma feirinha de hortaliças e frutas bem legal. A vida foi se desenrolando e e fui começando a sentir que estava de volta. Quando estava me sentindo mais fortalecida, decidimos adotar um outro gatinho para fazer companhia ao Onofre. Ele não gostava de ficar sozinho e isso me deixava com pena. Depois de muito procurar encontramos o Batatinha. E a vida tomou forma novamente.

Aqui Onofre ainda reina absoluto na casa, enquanto Batatinha vai pouco a pouco conquistando seu espaço.

Aqui Onofre ainda reina absoluto na casa, enquanto Batatinha vai pouco a pouco conquistando seu espaço.

Pra finalizar, deletei minha conta no Facebook. Deletei meu app do twitter do meu celular. Só mantive o Instagram.

Depois de tudo isso eu me sinto energizada o suficiente para voltar ao blog com força total. Quero muito tornar este espaço o meu objeto de trabalho. E por meio dele desenvolver projetos que ainda estão na gaveta. Ele será minha porta de contato com este mundo virtual que tanto nos suga, mas o objetivo é manter-me ativa na cozinha. Espero que seja produtivo pra mim e interessante pra quem quiser vir ler.

 

[Diário de bordo] Dizendo adeus ao Sri Lanka, dois anos e meio depois.

Serendipity é uma palavra que foi cunhada num romance de Horace Walpole: "Os três príncipes de Serendip", cuja história se passa no antigo Ceilão (um outro nome antigo do Sri Lanka é Serendib, de onde vem a palavra criada pelo autor) e onde os protagonistas estavam sempre encontrando algo incrível, que não estavam procurando originalmente. A palavra significa isso mesmo: feliz descoberta ao acaso. 

A vida nos reserva experiências que contribuem para o nosso crescimento. Cada momento, novidade, queda, decepção, alegria, ganhos ou perdas, nos permitem construir constantemente este projeto que só estará pronto, se estiver, no momento de nossa morte. A idéia de que a felicidade é um fim em si mesma, a grande busca da vida de todos nós, torna-se ultrapassada a partir do momento em que você entende: estar presente é o grande lance de toda esta busca. Como escreveu Guimarães Rosa, "A felicidade se acha é em horinhas de descuido.". Naquele pequeno espaço de tempo em que você está presente. Sem fazer planos, como disse John Lennon. Somente aceitando o que vem. 

Deixa a vida me levar

A nossa mudança para o Sri Lanka aconteceu numa horinha de descuido. Nasceu durante uma conversa minha com o Bruno, em um restaurante de comida inspirada no Sudeste Asiático. Durante um brunch de domingo, ainda em Miami. Naquela época a inclinação dele era de que nossa próxima cidade fosse na América do Sul. Eu falei, pensando alto, que apesar de adorar a idéia de conhecer mais os nossos países hermanos, acreditava que nós devíamos aproveitar a oportunidade de conhecer aquele mundo diferente que deveria ser a Ásia. Com suas comidas deliciosas e culturas incríveis, seria um prato cheio para nós. Desbravaríamos um pouco mais deste mundão que fica cada vez menor. Eu, pela comida. Ele, fotografando. "Imagina a gente passeando pelo rio Mekong!". Os olhos brilharam. 

Rota alterada para a Ásia, o Sri Lanka nos caiu no colo. A idéia original era tentar ir para a Índia, Vietnã, Tailândia, Japão ou mesmo a China, mas acabou que nos vimos embarcados nesta aventura de nome engraçado, cuja localização eu tive de ir ver no mapa. Seria a minha primeira vez morando numa ilha. A proximidade com a Índia contribuiu para a idéia de que o Sri Lanka seria uma miniatura daquele país. O tempo diria que esta era uma idéia completamente equivocada. Para o bem e para o mal.

Túnel do tempo

Lembro que uma das primeiras sensações que tive foi a de volta no tempo. Talvez o cheiro de naftalina por todos os lados contribuísse um pouco para essa impressão. Lá encontrei alguns objetos e referências que fizeram parte da minha infância / adolescência, entre os anos 80 e 90, e que são muito comuns. Aos poucos entendi que o excesso de humidade, os insetos que surgem por conta das características da capital e os longos tecidos dos Sarees das mulheres eram os responsáveis pelo cheiro que se tornou símbolo da ilha pra mim, muito embora a naftalina tenha um cheiro do qual eu nunca gostei. 

Falando nas mulheres locais, elas são um capítulo à parte. Se tem uma coisa da qual eu nunca me cansei foi de admirar as mulheres srilanquesas e seus cabelos fartos, pesados, longos, negros e lustrosos, passando em seus sarees coloridos por todos os lugares. Quanta inveja eu senti dos cabelos e da cor da pele, naturalmente bronzeada. Conheci uma mulher que tinha a pele de brilho tão fresco que absorvia a luz de maneira ímpar. Como pele de criança. Tive dificuldades em parar de olhar. Belíssima! As crianças srilaquesas também, com seus enormes e expressivos olhos de jabuticaba, boca pequena e queixos miúdos, os cortes e penteados mais fofos nos cabelos. As em idade escolar dão gosto de ver, voltando pra casa no uniforme branco com gravatinhas coloridas. As meninas usando tranças... 

A região central de Colombo tem um lago artificial que atrai muitos pássaros, especialmente pelicanos. A imagem deles voando bem baixo, parecendo pterodáctilos passando por nossas cabeças, junto a morcegos gigantes em revoada logo pela manhã ou no fim da tarde - além dos corvos barulhentos espalhados por todos os espaços - trouxe sensação de alegria pela fauna diversa encontrada na cidade. Tornou-se comum ver corvos levando as coisas mais inusitadas nos bicos durante o vôo: desde um sanduíche roubado de uma criança, passando por cabides de arame e fios para fazer ninho, chegando à ratos mortos e parcialmente eviscerados que as turmas de gralhas comiam. Um espetáculo de encher os olhos e que ajudou a forjar nossa experiência neste país que esteve em guerra civil por 30 anos, até 2009. 

Expectativa X Realidade

Aos poucos fui aprendendo um pouco mais sobre Colombo e a vida que eu levaria na cidade. Eu tinha pensado que talvez a capital do Sri Lanka se assemelhasse a uma cidade do interior brasileiro. Em alguns casos, acertei em cheio. Noutros, nada podia ser tão diferente. Pensei que as estradas talvez não fossem asfaltadas e por causa deste meu pré-conceito decidimos comprar um Jipe pra viajar pelo país quando possível. Mas a qualidade do asfalto das estradas é excelente, quase todas parecendo um tapete e sem buraco algum. As rodovias que ligam as cidades são recheadas de curvas e surpresas como mão dupla em pista simples. Uma distância de 100 km só pode ser vencida depois de quase 3 horas de viagem. Isso fez com que a escolha do carro tenha sido acertada, principalmente porque pudemos fazer Safáris nos parques nacionais usando nosso próprio carro. 

As casas srilanquesas são muito grandes e escuras. Muita madeira e quinas. Aberturas tipo cobogó nas paredes, cobertas com acrílico pra evitar os mosquitos transmissores da dengue. Corrimão cromado, escadas, varandas e bancos de cimento... Famílias inteiras vivem sob o mesmo teto. Isso tudo fez com que a nossa busca por uma casa pequena durasse muito mais do que o normal. No fim, alugamos uma casa de 4 quartos da qual eu nunca gostei, muito embora ela fosse uma das mais claras e sem quinas, com menos pavimentos e coisas estranhas que achamos. Minha energia não bateu com a da casa e eu nunca me senti bem dentro dela. A localização era ótima, apesar de ficar meio escondida numa pequena rua que abrigava uma espécie de vila de casas, quase todas iguais, onde a maioria dos moradores eram locais. 

A partir deste momento de contato com os locais foi que eu tive contato com o que é de fato o choque cultural. Foram tempos difíceis de ajuste. Surpreendentemente eu encontrei dentro de mim uma vontade grande de fazer dar certo a nossa vida ali. Algo dentro de mim dizia que a experiência valeria muito. 

Também quero viajar neste balão

No meio disso tudo, eu já fazia parte do IEA, uma associação de expatriados que me deu muito suporte neste processo. Por meio desta associação eu pude me envolver em várias atividades interessantes, além de usar meus talentos e habilidades para divulgar um pouco da cultura gastronômica brasileira por meio de aulas e pequenos eventos em minha casa. Fiz bons amigos por meio deste grupo, o que tornou a vida muito mais agradável e interessante. Uma pena que no fim eu não tenha conseguido furar a bolha expatriada que eu tanto almejava. De todo modo nossa experiência aqui foi melhor do que a de Miami, justamente porque saímos da bolha brasileira. 

Vento no litoral

Pouco mais de um ano depois do ataque, Jurema desenvolveu insuficiência renal. Antes disso ela foi vítima de intoxicação por mal-armazenamento de ração no supermercado. Depois de descoberta, a doença evoluiu muito rápido. Em parte por conta da inabilidade dos veterinários e a falta de estrutura das clínicas da cidade. Tivemos de optar pelo sacrifício da nossa maior companheira. Foi a decisão mais difícil que tive de tomar na vida. A maior ironia eu ter perdido o meu cachorrinho num lugar onde eu fiz tão bons amigos. Dizer adeus foi muito doloroso, mas ao mesmo tempo eu tinha muita certeza de que era o melhor para ela, porque estava sofrendo demais. Tivemos de enterrá-la no jardim e assim ficamos com uma casa enorme e vazia, sem a presença dela. Eu nunca havia imaginado que o Sri Lanka me tiraria a Jurema desse jeito. A partir daí, o copo meio-cheio passou a ser meio-vazio e fomos nos desconectando do país aos poucos. 

Uma casa muito engraçada

Fizemos muitas viagens buscando um novo posto na Ásia, porque depois de tudo o que aconteceu nós queríamos fechar o ciclo. Visitamos Vietnã, Índia, demos uma passadinha nas Ilhas Seychelles pra descansar no fim do ano e fomos passar o ano-novo Chinês na China. Experimentamos vários mundos novos em pouco tempo, tentando nos desvencilhar das saudades do nosso cachorrinho e de todo o sofrimento que ela enfrentou vindo morar no Sri Lanka com a gente. Funcionava durante os passeios, mas a saudade gritava ainda maior quando chegávamos de volta em casa e ela não estava lá. Era o momento de maior solidão: a casa vazia e triste. Depois de tudo e de nossa decisão de só termos um novo cachorrinho depois que nos mudássemos de país, eis que surge em nossas vidas, Onofre.

Quando um certo alguém

Um gatinho de aproximadamente 4 meses, com as mesmas cores da Jurema, só que com a prevalência do branco sobre o caramelo, apareceu na porta de casa e já ia entrando quando o jardineiro o impediu. Bruno decidiu que iria a uma reunião e que depois o levaria para um lugar seguro e eu resolvi que enquanto isso era melhor mantê-lo no jardim. Decidi que era melhor levá-lo ao veterinário para castrá-lo e dar as vacinas antes de entregá-lo para adoção, visto que em Colombo eram muito comuns gatos de rua. Um problema crônico de super-população, muito embora os srilanqueses tenham por hábito alimentar aos animais. Uma coisa levou a outra, tínhamos a viagem pra China, não deu tempo de castrar e decidimos deixar o gatinho no jardim durante nossa viagem. Voltamos e ele continuava por lá. Manhoso e muito fofinho, ele foi nos conquistando aos poucos e quando percebemos já não queriámos que ele nos deixasse.

Isso junto ao fato das pessoas começarem a dizer de que ele era a reencarnação da Jurema: porque tinha o mesmo tempo de vida que ela tem de morte. Porque ele sempre agiu como se a casa fosse dele e ronronou pra gente desde o primeiro contato. E porque eu tive um sonho 3 dias antes de sua chegada onde a Jurema se transformava num gato. Tantas coincidências foram usadas por nós como motivos para amar este bichano sortudo, que veio parar na casa de pessoas que diziam não gostar de gatos. E assim, 4 meses depois, a casa estava de novo cheia de vida. Saíram os latidos grossos e cheios de graves ranhetas da Juju. Entraram os miadinhos agudos, longos e muito manhosos de Nonô. <3 Parece que o país quis se redimir conosco de alguma forma nos dando este gatinho de presente. 

Encontros e despedidas

Nossa vida no Sri Lanka foi rica, inclusive nas dores. E por termos vivido tudo muito intensamente chegou uma hora que concluímos: chegou a hora de partir. Na verdade, começamos a nos despedir desde que Jurema nos deixou. A sensação foi que íamos desapegando cada dia um pouquinho mais. Tudo o que era pitoresco foi começando a incomodar. Os modos, as formas de solucionar problemas, o modo de agor e pensar das pessoas... tudo isso foi aos poucos nos dando a certeza de que já tínhamos vivido tudo o que havia pra ser vivido neste país. 

No fim, as coisas aconteceram muito rápido e tivemos a chance de percorrer alguns dos países que figuravam como possibilidade de novo destino. Pudemos decidir com clareza, pesar o que seria importante, onde aprenderíamos mais, onde teríamos mais possibilidades de crescimento. E batemos o martelo na China. Tudo aconteceu de uma maneira tão suave que realmente parece que tinha tudo pra ser. Até o fato de não termos mais um cachorro, e sim um gato. Com o frio que vamos enfrentar no inverno de Pequim, um gatinho é muito mais cômodo de lidar que um cãozinho que demanda passeios. 

E, assim como acontece sempre, após a decisão da partida vem a dor das saudades de tudo o que começamos a deixar pra trás. O olhar pela janela do carro passa a perceber coisas que o costume nos tinha roubado. A sensação de frescor e novidade invadindo mais uma vez. A vontade de dar mais uma passeadinha e ir naquele lugar que você sempre quis, mas nunca arrumou jeito. Fora os amigos, a rotina, toda a vida organizada que a gente tinha, por mais que não estivesse perfeita. Tudo mudou com a marcação da data de partida. Fomos felizes aqui. E ainda recebemos novos amigos de presente no fizinho da nossa jornada. No final, ficou a sensação de gratidão.

[Diário de Bordo] Sobre o choque cultural e os 9 meses de Sri Lanka.

Quando ainda morava em Miami, eu costuma dizer que me sentia num limbo. Porque a cidade não é considerada americana pelos estadunidenses; porque há uma grande migração sul-americana; porque os sul-americanos que conheci eram, em sua maioria, gente desgostosa com seus países de origem e por isso falavam muito mal deles; porque a cidade me parecia artificial demais; porque foi muito difícil fazer amigos fora da comunidade brasileira... Tudo o que eu queria viver era uma experiência americana. Afinal é por isso que a gente mora em outro país, né? Experimentar uma nova forma de viver a vida. Pois, fora as viagens que fizemos e a infraestrutura fantástica que põe tudo o que você quer na sua porta, experimentar o american way of life foi tudo aquilo que não vivi em 3 anos e meio de residência. É claro que Miami me proporcionou coisas muito boas, não sou tola de dizer o contrário. Foi um período, no mínimo, confortável. E eu ainda pude compreender mais as incoerências do modelo "americano" de vida. Mas eu dizia aos meus amigos que achava que morar num limbo era muito difícil e que, por conta disso, eu achava que o choque cultural seria muito mais interessante de lidar. Ledo engano!

Choque cultural é um conjunto de situações que compõem a experiência do expatriado em seu novo lar. Uma sensação de estranhamento muito significativa, que te põe em xeque o tempo todo até que você consiga se adaptar à nova realidade. Leva tempo para se acostumar, ainda mais levando uma vida onde você necessariamente entra mais em contato com outros expatriados que com os locais. Dividido mais ou menos em 4 fases, lua-de-mel, negociação, ajustamento e adaptação; posso dizer que estas etapas fazem um certo sentido. Olhando minhas duas postagens anteriores sobre a vida no Sri Lanka, fica claro que eu estava em lua-de-mel com Colombo. Tudo era lindo, até o feio. Esta fase perdurou até mais ou menos 1 mês depois que mudamos para nossa residência definitiva (os primeiros 4 meses), quando comecei a vislumbrar o que seria o período de negociação.

Casa ao invés de apartamento

Cresci vivendo em apartamentos, estas caixinhas onde você está empilhado sobre outras pessoas, vivendo suas vidas tão perto e ao mesmo tempo tão longe. Mas me acostumei a isso e chego a pensar que prefiro a vida em apartamentos. Uma casa dá a sensação de maior liberdade, mas com esta liberdade vem o trabalho redobrado. É jardim, mais sujeira pra limpar todo dia, insetos e outros bichos com os quais você não está acostumado. E as casas aqui em Colombo costumam ser muito grandes. Não gosto muito de espaços enormes. Acho desperdício. Quando eu finalmente comecei a enxergar poesia no fato de viver em uma casa, como quando vi a variedade de passarinhos que vêm me visitar no jardim todos os dias, aconteceu algo que me fez fechar pro mundo a minha volta de uma forma muito violenta.

Jurema foi atacada por um pastor alemão da vizinhança. 

Jurema é um cão de energia moderada. Nunca foi de grandes rompantes, com necessidade de correr horrores. Mas está acostumada a passear todos os dias por 3 vezes para cheirar as redondezas. Como um cão cuja raça foi desenvolvida para a caça, isso é algo que a faz muito feliz. Ela não compreendeu muito bem que o jardim era um lugar onde ela poderia passear e fazer suas necessidades. Pra ela aquilo fazia parte da casa e portanto, sem cheiros diferentes e interessantes, muito menos lugar de fazer a sujeira. Passei a passear com ela no quarteirão ao redor da casa e ela gostava muito. Até comecei a fazer amizade com uma musicista local que esteve no Brasil em meados dos anos 80 e que quis me mostrar as fotos da visita dela. Daí, aconteceu o inimaginável.

Fui passear com Jurema no fim da tarde de uma sexta-feira. De repente, apareceu um Pastor Alemão na minha frente. Jurema estava de coleira e correia, toda certinha. O pastor estava solto e sem supervisão. Os dois se encararam, Jurema começou a latir, eu paralisei de medo do cão nos atacar, mas fui puxando ela devagar. Ele chegou perto muito rápido e a atacou. Eu me lembro do barulho da boca dele se abrindo e a pegando até hoje. Por 4 meses, a primeira imagem que via quando fechava os olhos pra dormir era o ataque. Tentei tirá-la da boca do bicho nem sei como, não me ocorreu que ele poderia se voltar contra mim enquanto a atacava. Eu só queria que ele a soltasse. E ele a soltou, finalmente. Ela caiu nos meus pés. Olhei pra ela com medo de vê-la morta. Ela estava muito assustada e com um pedaço grande de pele arrancado das costas. Eu ouvi risos. Olhei dos dois lados e percebi que, enquanto eu tentava salvar meu cachorro, eu tive 3 testemunhas que nada fizeram para ajudar, mas assistiram a tudo rindo muito do acontecido. Do meu lado direito, dois policiais que faziam guarda numa residência oficial. Do lado esquerdo, a dona do Pastor. Eles riam. Eu entrei em pânico. Peguei Jurema no colo com cuidado e desatei a correr em direção à minha casa, deixando os risos para trás. Eu não conseguia compreender como tudo aquilo poderia ter acontecido. Como pessoas poderiam rir de algo tão horroroso. Como podem não ter oferecido nenhum tipo de ajuda. Fiquei em estado de choque.

Jurema foi operada e tudo correu bem. Ela não teve danos internos. O veterinário foi muito habilidoso na sutura e hoje mal dá pra ver a cicatriz. Jurema recuperou-se relativamente rápido e chegou a dar algum trabalho. Enquanto ainda tinha pontos, estava sempre muito agitada. Porém, dois dias depois do ataque, outro capítulo da história me deixou ainda mais assombrada. Três policiais vieram bater em minha casa. Um deles, Inspetor de polícia. Queriam modificar uma audiência, marcada por solicitação do meu marido na delegacia, cujo horário era no meio daquela tarde. A alegação era que a dona do pastor tinha uma consulta para ir e, por isso, precisava que eu aceitasse ir à delegacia no sábado. Eu disse que compreendia o pedido, mas que não poderia deixar meu cão sozinho porque se recuperava da cirurgia. Eles mudaram o tom de recomendação para algo que me pareceu uma ameaça. Digo isso porque outra coisa que eu percebi é que quando um srilanquês não quer ouvir o que você diz, ele dá uma de desentendido e começa a falar a língua local. Um deles veio me dizer que não entendia por que eu havia acionado a polícia se não estava querendo colaborar. Expliquei de novo que eu não podia ir só à delegacia, porque é meu marido quem tem visto de trabalho aqui. Ele teria de ir junto comigo. Quem testemunhou a agressão fui eu, portanto teria de estar presente. E no sábado não haveria ninguém para ficar com Jurema, dar os remédios e supervisionar a pobre. Aí eu comecei a me sentir coagida. O policial ia se aproximando mais de mim tentando se impor. Eu explicava e ele não compreendia de propósito. A dona do cão tinha suas razões eu não podia ter as minhas. Fui ficando sem ar e nervosa. Liguei para o Bruno, que me disse que a polícia comum não pode nos abordar como eles estavam fazendo. Me pediu para pegar os nomes dos policiais e passar pra ele. Quando comecei a anotar, o inspetor ligou para alguém. Bruno disse não desmarcaria audiência alguma, se a dona do cão agressor não podia comparecer, paciência. E me orientou a entrar em casa e não falar mais com os oficiais. Me despedi. O jardineiro que trabalha pra nós estava por perto neste dia para me ajudar com as trocas de idiomas e, assim que eu entrei pra casa, me disse que tudo era muito estranho: "Mam, this is totally nonsense! They can't do this to you!". Assim que eu fechei o portão, pude ver que os oficiais rumaram para a casa da dona do pastor. 

Vim saber depois que a senhora em questão é viúva de um juiz, morto em 2004 numa ação de retaliação a um julgamento por tráfico de drogas. A polícia no Sri Lanka é muito corrupta. E a viúva manda e desmanda nos policiais que tentaram me coagir. Eu comecei a pensar em como isso que eu tinha acabado de viver é tão comum na vida de tanta gente no Brasil. O sentimento é de uma impotência tão assustadora, onde você se torna tão vulnerável que a vontade é de sumir do mundo. Isso quando você não começa a duvidar de si e achar que você pode ter causado tudo aquilo. Como pode alguém ser vítima de algo e vir ser coagida pela polícia em sua própria casa? Eu não parava de chorar. Tudo o que eu queria era viver num apartamento que me fizesse sentir segura, onde eu pudesse esquecer que há vizinhos... Levei um certo tempo para me recuperar do episódio. Jurema foi mais rápida que eu. No fim, tudo acabou bem. A dona do cão não fez nada: quando muito pediu umas desculpas esfarrapadas pro Bruno. Pagar pelo tratamento da Jurema? Nem menção. Depois ainda viemos a saber que ela havia soltado o cão de propósito. Parece que não gostava que eu passasse na porta da casa dela com Jurema. O jardineiro tinha razão. Nonsense!

Conseguimos fazer com que Jurema se acostumasse a sentir que seu passeio seria no jardim. Levou tempo, mas ela também aceitou. Porém, nunca mais pude perguntar pra ela se queria passear, porque a palavra ainda significa ir pra fora de casa. E isso, ao menos aqui, ela não vai fazer mais...

A casa começa a mostrar coisas interessantes

A riqueza de pássaros e vida nativa do país é incrível. Eu já tive visitantes dos mais diversos tipos e cores por aqui. Outro dia vi uma ave pousar no jardim carregando um rato nas garras. O jardineiro disse que se tratava de uma espécie de águia do Sri Lanka. O rato conseguiu escapar. Seguem fotos colhidas na internet dos pássaros que pousaram no meu quintal.

Fonte:&nbsp;http://feathersofsrilanka.lk/wp-content/uploads/2015/11/IMG_0774-1.jpg

Fonte: http://feathersofsrilanka.lk/wp-content/uploads/2015/11/IMG_0774-1.jpg

Fonte:&nbsp;http://hackingfamily.com/Flora_&amp;_Fauna/SriLanka/SriLankaBirds.htm

Fonte: http://hackingfamily.com/Flora_&_Fauna/SriLanka/SriLankaBirds.htm

Fonte:&nbsp;https://www.pinterest.com/pin/424816177326875710/

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O pica-pau.Fonte:&nbsp;http://feathersofsrilanka.lk/black-rumped-flameback/&nbsp;

O pica-pau.

Fonte: http://feathersofsrilanka.lk/black-rumped-flameback/ 

A águia que carregava o rato.Fonte:&nbsp;http://feathersofsrilanka.lk/wp-content/uploads/2015/11/IMG_9177.jpg

A águia que carregava o rato.

Fonte: http://feathersofsrilanka.lk/wp-content/uploads/2015/11/IMG_9177.jpg

Fonte:&nbsp;http://hackingfamily.com/Flora_&amp;_Fauna/SriLanka/SriLankaBirds.htm

Fonte: http://hackingfamily.com/Flora_&_Fauna/SriLanka/SriLankaBirds.htm

Este pássaro achamos sendo atacado por corvos. Esta todo depenado e muito assustado. Jurema o viu e o atacou também. Conseguimos recolhê-lo antes que ela conseguisse pegá-lo. Tadinho, gritava tanto. O deixamos num jardim aberto que temos dentro da c…

Este pássaro achamos sendo atacado por corvos. Esta todo depenado e muito assustado. Jurema o viu e o atacou também. Conseguimos recolhê-lo antes que ela conseguisse pegá-lo. Tadinho, gritava tanto. O deixamos num jardim aberto que temos dentro da casa para que se recuperasse. Quando o dia amanheceu ele já tinha ido embora.

Fonte: http://www.mysrilankatours.com/bird-watching-in-sri-lanka/

Pelas cores dele, achei logo que fosse o Pica-pau do desenho! Um amigo me advertiu que se tratava de um Martim Pescador.Fonte: http://www.templeberg.com/wp-content/uploads/2014/07/sri-lanka-birdlife-620x275.jpg

Pelas cores dele, achei logo que fosse o Pica-pau do desenho! Um amigo me advertiu que se tratava de um Martim Pescador.

Fonte: http://www.templeberg.com/wp-content/uploads/2014/07/sri-lanka-birdlife-620x275.jpg

Todos os dias, ao por-do-sol, morcegos sobrevoam a região em que moramos. Muitos! Enormes! Lindos de ver. Um monte de sinais de batman no céu.

Fonte:&nbsp;http://djelab.aminus3.com/image/2008-07-26.html

Fonte: http://djelab.aminus3.com/image/2008-07-26.html

Esquilos estão sempre cantarolando e mandando seus sinais uns para os outros. Subindo e descendo das árvores. 

E eis que apareceu a Margarida, o Water Monitor que eu queria tanto ter visto foi surgir de modo inesperado, quando as chuvas começaram. Margarida deu o ar da graça por 3 vezes. E eu fiquei encantada com o misto de cobra e jacaré passando na porta da minha casa, indo em direção à casa do pastor alemão. Os nativos aqui não têm medo dos lagartões. São muito comuns por toda a cidade. Enormes, podem atingir 2 metros de comprimento. Sabe-se lá quantos quilos. Margarida parecia estar prenha, procurando por um lugar seguro para a desova. 

O fato de trabalhar em casa acaba contribuindo para que eu me isole um pouco do mundo. O caso da Jurema reduziu ainda mais minhas saídas. Mesmo assim, consegui fazer algumas amizades bacanas, pessoas que estando na mesma situação buscam apoiar-se mutuamente, estreitando laços. Mas isso me fez perceber uma coisa: é muito difícil conseguir desabafar em uma segunda língua. As palavras saem mas parecem que não estão conectadas às emoções. Isso me faz sentir muitas saudades da presença dos meus amigos brasileiros. E as saudades do país só aumentam, além da angústia com nosso momento atual. Tudo colabora para que haja maior dificuldade de passagem para a nova fase do choque cultural, que é a do ajustamento. Fico pensando em quando isso vai ocorrer. Enquanto isso, vou descobrindo novos prazeres. Meditação e ioga têm sido uma descoberta incrível!  

Outro dia, eu estava voltando de uma caminhada quando um corvo me deu uma rasante e cagou na minha cabeça. Compreendi na hora que a fase de negociação deveria caminhar para o fim. Resta saber como será a próxima. Shit happens. Move on!