[Sá Teresa] Caçarola Italiana e as saudades que sinto de minha avó.

Minha avó tinha uma rotina bastante rígida. Acordava por volta das 7 e já ia preparar o café da manhã. Não raro as preparações do desjejum dividiam espaço com as do almoço, normalmente entre as duas cozinhas que ela comandava: uma dentro de casa e outra, numa casinha extra na horta (quintal) onde ficava o fogão à lenha. Eu sempre passava minhas férias na casa dela e invariavelmente acordava mais tarde. Mas antes de levantar eu já a escutava chamando pela empregada e dando instruções, pegando a galinha no galinheiro pra matar, chamando um ou outro tio que tinha ido tomar um café e pedir a bênção, passar o escovão no chão, atender ao telefone... Quando eu finalmente criava coragem pra levantar, ela já estava num frenesi louco de preparação do almoço, mas sempre nos recebia com um sorriso, logo depois anunciando o cardápio do almoço. "Tome logo o seu café pra gente arrumar a mesa."

Sempre de colar e batom, dona Teresa era a simplicidade e o amor encarnados. Deixou muitas saudades...

Sempre de colar e batom, dona Teresa era a simplicidade e o amor encarnados. Deixou muitas saudades...

De vez em quando ela me gritava da casinha pra me avisar que tinha feijão pagão. Eu corria pra pegar uma caneca marinex âmbar e voava pra casinha pra pegar a minha parte: uma concha dos bagos graúdos e brilhantes do feijão na caneca, um pouquinho de sal, caldo por cima pra ajudar a espalhar o tempero. O cheio de feijão novo cozidinho, a caneca entre as mãos como um tesouro, a vó comentando uma coisa aqui outra ali e a vida sendo perfeita naquele exato momento. E dona Teresa sorria. Ela parecia regozijar-se no prazer que nos dava com sua comida, sua forma mais pura de nos demonstrar o amor que nutria pela família. Aquela rotina pesada de todo o dia valia a pena. 

No almoço, ela ficava de olho nas coisas que escolhíamos por no prato e queria sempre saber por que determinado preparo tinha sido preterido: "Cê não vai comer do chuchu refogadinho? Tá tão gostoso!". Mesmo depois de terminar seu prato ela permanecia na mesa, o queixo pousado nas mãos, observando a gente comer. Era incrível como ela se realizava na nossa saciedade, o amor só era entregue devidamente se a gente gostasse da comida. E não houve uma vez em que isso não aconteceu. Ela tinha o dom das panelas e do amor. Logo depois ela já estava supervisionando o ariar de panelas, organizando a cozinha pra logo mais o café das 3. E só depois da mesa posta, ia descansar um pouco deitada no sofá, a remoer pensamentos e prender a pele das costas das mãos com a boca. De lado, braço de cima dobrado pra levar a mão à boca, as perninhas cruzadas na saia e com os pés descalços.

Há 5 anos, eu viajei a Boa Esperança pra passar uma semana com a minha avó. Eu estava vivendo um período de transformação na minha vida e queria ficar um pouco com ela. Eu tinha recém adquirido um celular que gravava e armazenava e tive a idéia de entrevistá-la para saber sobre suas receitas e as memórias que ela tinha delas. Porque minha avó tinha uma memória tão incrível que não tinha caderno de receitas. E eu não queria que elas caíssem no esquecimento depois que ela não estivesse mais conosco. 

Estas gravações são das maiores raridades que tenho comigo hoje. Quando sinto muitas saudades, escuto uma ou outra história, junto às receitas que nos fizeram felizes por tanto tempo. É bom porque, por meio destes instrumentos - as gravações e suas receitas com medidas imprecisas (lata de cera, pires, prato pelo friso, copo, xícara), mas que a experiência tornou mais que exatas deixando muita balança no chinelo -, eu consigo me conectar com a essência dela e isso me acalma e fortalece. 

Hoje completam-se 2 anos que a minha avó se foi e nos deixou. Setembro começou e eu fiquei pensando numa forma de fazer uma homenagem à ela, minha mais forte referência na cozinha. Dona Teresa personificou aquilo que todo mundo que trabalha com comida possibilita todos os dias: transformou amor, paciência, planejamento e dedicação em reuniões regadas à muita conversa e pertencimento. 

Acredito que esta seja uma das receitas mais simples que ela deixou. E, talvez por este motivo, era uma das favoritas dela. Uma das mais realizadas no final de sua vida, a que recebeu uma versão sem açúcar para que ela pudesse comer com menos culpa, por conta do diabetes. E daí eu pensei que muito mais do que fazer a minha receita favorita, seria mais interessante fazer a preferida dela. E foi bacana porque me senti dividindo o momento com minha avó enquanto comia a Caçarola Italiana. É um bolo neutro, meio com consistência de pudim. E é incrível como me é impossível comer apenas uma fatia. 

Caçarola Italiana (rendimento: 24 bolinhos na forma de cupcakes ou um forma redonda de buraco no meio)

Os bolinhos, já frios. Dá pra comer quente, mas tem de ter muito cuidado. De todo jeito é gostoso!

Os bolinhos, já frios. Dá pra comer quente, mas tem de ter muito cuidado. De todo jeito é gostoso!

Ingredientes:

4 ovos inteiros

1 litro de leite integral

240g de farinha de trigo

240g de açúcar refinado

180g de queijo minas curado e ralado fino

1 colher de café de extrato de baunilha (opcional)

Modo de preparo: Aqueça o forno a 180C/ 356F. Unte a forma com manteiga pomada. Coloque os ingredientes no liquidificador e bata rapidamente para que todos se incorporem. A massa é muito líquida mesmo. Verta-a sobre a forma e leve ao forno por aproximadamente 30 minutos. Faça o teste do palito, se sair limpo, retire do forno. É normal que a massa murche assim que sai do forno. Ela cresce tanto lá dentro que quando sai da até dó de tão rápido que murcha. 

Meia receita é o suficiente para preencher uma forma de muffins de 12 espaços. Polvilhe um pouco de queijo na superfície antes de por no forno.

Meia receita é o suficiente para preencher uma forma de muffins de 12 espaços. Polvilhe um pouco de queijo na superfície antes de por no forno.

Com uns 15 minutos de forno a massa começou a crescer bonita.

Com uns 15 minutos de forno a massa começou a crescer bonita.

É impressionante como o bolo murcha rápido depois de retirado do forno. Dá uma dor no peito de pena... Mas é assim mesmo, não se assuste!

É impressionante como o bolo murcha rápido depois de retirado do forno. Dá uma dor no peito de pena... Mas é assim mesmo, não se assuste!

O bolinho murcha até quase a metade. 

O bolinho murcha até quase a metade. 

O bolinho por dentro. 

O bolinho por dentro. 

A caçarola não é um bolo bonito, mas é muito gostoso. E sempre dura muito pouco, principalmente se servida na mesa com café, pra todos comerem enquanto batem papo. É um bolo/pudim leve e despretensioso, que tem cheiro de amor de família na mesa do café, conversando e rindo. Vó: obrigada por me fazer companhia enquanto eu comi meus pedaços ontem. E, olha: saudades demais, viu? Beijo grande, Dona Teresa!

Pão de queijo

Antes de surgirem os pães de queijo congelados e prontos pra assar, a gente fazia em casa. E lá se vão bem uns 20 anos. Eu me lembro que, de tempos em tempos, minha mãe mudava a receita. A última que fizemos, antes de nos rendermos à facilidade do Forno de Minas, levava purê de batatas na composição. Era uma receita mais complicada e eu confesso que tinha um pouco de preguiça de fazer. Achava que pão de queijo tinha que ser algo mais simples, como o da minha avó. Uma coisa sempre me chamou a atenção: o pão de queijo que eu comia em casa era bem diferente do que eu comia na casa dela. É claro que eu sabia que, como toda receita tradicional, existem milhares de receitas diferentes. Mas parecia que havia um ingrediente diferente ali, eu só não sabia qual. Até que descobri que enquanto minha avó usava o polvilho azedo pra fazer o dela, em Brasília nós usávamos o polvilho doce. As diferenças principais nos resultados são:

  1. Miolo: com polvilho azedo ele fica bem aerado. Já com o doce, o miolo fica compacto e muito mais macio, parecido com chiclete.
  2. Crosta: também muda significativamente: com o azedo, ela fica mais seca e craqueladinha; com o doce, fina e lisa. 
  3. Sabor: com o azedo, obviamente, mais ácido; com o doce, o sabor do sal fica mais perceptível. 

Quando morei em Belo Horizonte, cheguei a ser vizinha da loja da Forno de Minas em sua época áurea (1996), antes da empresa ser vendida para uma companhia americana. Nesta época, eu comia muito a receita deles. Porém, de lá pra cá o meu paladar mudou significativamente e hoje eu já não acho graça. Porém, só comecei a fazer o meu próprio pão de queijo depois que peguei a receita da minha avó. Utilizei a dela pra fazer a entrada que tive de desenvolver pro jantar da minha formatura em Gastronomia. Servi pão de queijo com pernil, petisco que sempre abria as festas na casa dos meus avós. A receita do prato foi publicada no meu blog antigo, o 2Bocados. Mas lá a receita é para 10 pessoas, pois era uma entrada de um jantar de 4 etapas. Mais pra frente eu posto ela aqui. 

Semana passada recebi primos mais que queridos aqui em casa. O contato com eles me aqueceu o coração e me encheu de alegria, porque me transportou para os tempos de criança e adolescência passados em Boa Esperança, cidade de meus avós maternos. Meu primo Vinícius é um irmão pra mim. Brincamos muito juntos e trocamos muitas experiências durante a juventude. Eu o amo de paixão. E a Sara é uma fofa! Num dia, que eles passaram inteiro fora fazendo compras, me deu vontade de recebê-los com pão de queijo à noite. Depois de mais de 10 dias viajando, eles já deviam estar mortos de saudades da comida brasileira, especialmente das quitandas mineiras. Foi aí que eu percebi que ainda não havia registrado minha receita aqui no blog. Por isso, lá vai:

Pão de queijo da vó Teresa

500g gramas de polvilho azedo*

160ml de leite integral

160ml de óleo de girassol

queijo minas curado e ralado**

queijo parmesão ralado**

3 ovos inteiros

10g de sal refinado***

leite pra dar o ponto, se precisar

Modo de preparo:

*Meça, num prato fundo, o volume de polvilho. Transfira-o para uma tigela de vidro ou metal. Numa panela, ferva o leite junto com o óleo, até que o leite cubra a superfície do óleo. Não precisa deixar mais tempo, sob pena de derramar a mistura no fogão. Escalde o polvilho com essa mistura, mexa com uma colher de pau pra diminuir os grumos e deixe esfriar. Assim que a mistura resfriar, adicione os queijos ralados.

** A quantidade de queijo a ser usada na massa deverá ser a mesma, EM VOLUME, que a de polvilho. Por isso é importante medir o polvilho no prato. A proporção dos diferentes queijos deve ser 40% parmesão e 60% minas.

Coloque 2 ovos na massa e misture com a mão, procurando incorporar bem. Dependendo do polvilho usado, você precisará de mais ou menos hidratação. Explico: quando encontro polvilho no supermercado por aqui, normalmente é o YOKI. Esta marca costuma hidratar mais rápido e precisar de menos ovos/leite. Porém, já tem um tempo que não encontro mais o Yoki pra comprar. Tive de recorrer a uma lojinha de produtos brasileiros que tem por aqui e eles só vendem o AMAFIL, que é bem mais seco e fica mais grudento com a mesma quantidade de ovos/leite. Portanto é importante ir incorporando os líquidos aos poucos, pra avaliar e sentir o polvilho e verificar a quantidade certa de hidratação.

Prove a massa. Dependendo do quão salgado é o queijo que você utiliza é que a quantidade de sal será determinada. Deixe a quantidade certa de sal pesada e, depois de provar, determine a quantidade que precisará usar destes 10g. Daí, é só bater junto ao terceiro ovo (como se fosse fazer uma omelete) pra ficar mais fácil de incorporá-lo à massa. Se depois disso ela ainda estiver seca, adicione leite frio aos poucos, até obter a consistência adequada. 

A massa do pão de queijo fica pegajosa nas mãos. Se a sua estiver muito seca, precisará mais leite. Para limpar as mãos, use uma colher de sobremesa pra raspar. 

A massa do pão de queijo fica pegajosa nas mãos. Se a sua estiver muito seca, precisará mais leite. Para limpar as mãos, use uma colher de sobremesa pra raspar. 

Pré-aqueça o forno a 180 graus Celsius (ou 356 fahrenheit). Com a colher de sobremesa, vá retirando quantidades iguais de massa e enrolando nas mãos, untadas com um pouco de óleo. Use formas antiaderentes e não precisará untá-las. Caso use as de alumínio comuns, unte com uma camada fina de óleo. Asse os pães por aproximadamente 25 minutos, começando pela grade de baixo, olhando após primeiros 10 pra ver como evolui o crescimento das bolinhas. Quando perceber que a crosta coagulou (o brilho da massa crua passa para um aspecto opaco) e elas começaram a crescer, mude a posição da assadeira pra a grade de cima e, neste momento, coloque a outra assadeira. Asse por mais 10 minutos ou até que a superfície esteja dourada e, apertando o pão de queijo pelas laterais, ele esteja firme. Sirva quente, com um cafezinho, manteiga, requeijão de copo, presunto, pesto...